quarta-feira, 25 de abril de 2007

A VIDA É UM PISCA-PISCA


Uns dias atrás eu me deparei com um livro da coleção do Monteiro Lobato, "Memórias da Emília" (1936). É difícil de acreditar, lendo o livro, que ele tenha sido feito pra crianças, embora se saiba que o autor escreveu vários de seus livros buscando muito mais atingir o público adulto que o infantil, assim como fez Chico Buarque quando escreveu as canções do musical "Os saltimbancos" nos anos 70. Acho que é o caso desse.

Logo no início do livro, aparece um diálogo entre a boneca Emília (sou fã dela, boneca de personalidade forte, sabe o que quer) e o Visconde de Sabugosa. Achei tão impressionante que li o trecho pra família inteira. Daqui a pouco eu coloco.

Mas do que fala o livro? Bom, Emilia quer reunir num livro as suas memórias e pra isso, chama o Visconde pra ajudá-la. Logo de entrada ela diz que todo livro de memórias precisa ter uma pitada de mentira, porque se o indivíduo não inventa alguma coisa pra colocar sobre sua vida, o leitor vai achar que a vida do sujeito é igual a qualquer outra, ou seja, comum demais. Achei isso o máximo, me fez lembrar o que a gente busca quando assiste a um filme ou lê um livro, ou mesmo quando vê um capítulo de novela: que graça teria se a gente se deparasse sempre com a mesma realidade que vive todos os dias? Outro dia na escola, a coordeadora pedagógiaca tava falando que os alunos do EJA queriam fazer passeios diferentes. Dias antes eles foram assistir a uma peça que falava sobre pobreza e miséria. Não gostaram. Argumento: "porque nós iríamos querer ver representada a realidade que já conhecemos? Queremos ver coisas diferentes, e que nos botem pra cima". Por outro lado, o que querem os gringos que saem lá do seu conforto de primeiro mundo na Europa e nos EUA pra conhecer favela e gueto aqui no Brasil? É só pensar. Vivemos buscando coisas que estão além da nossa realidade mesmo... é natural do ser humano.

Ai, viajei... mudei muito de assunto, tava falando do livro "Memórias da Emília". O trecho que mais me impressionou e que eu já comentei acima é esse:


"A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais. [...] A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscados. Cada pisco é um dia.

Pisca e mama;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim pisca pela última vez e morre.

- E depois que morre? - perguntou o Visconde.

- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é? "

(Monteiro Lobato- Memórias da Emília)


Não me lembro bem em qual momento Emília expôs sua teoria sobre a vida, porque já faz um tempo que li o livro e não tenho ele aqui, mas a síntese da existência humana está, nesse trecho, brilhantemente representada pela metáfora do pisca-pisca de olhos. Maravilhoso! Como é poético e filosófico ao mesmo tempo.
Só que ainda me intriga a afirmação de que quando a gente morre, vira hipótese. Ainda não consegui atinar com o sentido disso. Se alguém que de repente, por curiosidade ou por acaso mesmo, passar por esse blog e quiser me esclarecer, ficarei agradecida.


E desejo a todos que procurem dar uma piscada de cada vez, e como diz o sábio Macaco Simão, pingando sempre um colírio alucinógeno, porque ninguém é de ferro.


PS: 27/04 - Tive respostas disso no orkut, através de um tópico que eu criei na comnidade do Monteiro Lobato.

Resposta 1:

Toffo diz: Hipótese, no sentido comum, significa conjectura, presunção, pressuposição, isto é, ocorre quando a imaginação antecipa um conhecimento para explicar um fato, independentemente de esse conhecimento ser verdadeiro ou falso. No sentido filosófico, significa proposição (ou conjunto de proposições) antecipada provisoriamente como explicação de fatos, fenômenos naturais, e que deve ser ulteriormente verificada pela dedução ou pela experiência. Quando Emília diz que quem morre vira hipótese, quer dizer justamente isso: que vira uma proposição a ser verificada no futuro, já que no presente isso não é possível.
Resposta 2:
Gian diz, interagindo com a resposta anterior: Bem explicado. Hipotético é algo que pode se confirmar ou ser falseado. Com isso Lobato quer dizer que a pessoa pode continuar uma vida após a morte, ou não. Legal que ele não te dá uma resposta pronta e ainda faz uma bela metáfora.

Um comentário:

Anônimo disse...

Quando ouvi essa passagem na excelente projeção que é feita a cada hora lá no terceiro andar do museu da língua portuguesa: chorei. Não convulsivamente nem sofridamente, mas de alegria, de simplicidade e de clareza. Que imagem magnífica Lobato construiu nessa passagem...

Parabéns pelo blog. Estamos juntos.

Um beijo.

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