segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Pensamentos particulares e literários


Deixei o blog no vácuo durante alguns dias. Me faltou o que falar, ou talvez tivesse tanto a dizer que tenha travado... sei lá.

Voltei a trabalhar de novo, mais desencanada do que nunca. Acho que levei a sério demais quando decidi que a palavra de ordem no trabalho passaria a ser DESENCANAR. Desencanei de tal forma que acho que fiquei até meio relapsa.

Ao mesmo tempo, tô precisando arrumar um segundo emprego logo porque meu salário não tá dando pra pagar as minhas contas. Como estou pretendendo fazer uma viagem longa, vou precisar de grana, e desta vez viajo nem que tenha que vender cachorro quente nas horas vagas.

Cabeça tranqüila, apesar dos dias intensos que tenho vivido, talvez os mais intensos da minha vida. Coração aos pulos, numa instabilidade estável, já ouviu essa? Nem me pergunte o que eu quis dizer porque nem eu mesma vou saber explicar. Basta saber que paradoxos existem na vida, e como existem... talvez um dia, em breve, eu consiga escrever sem usar tantos enigmas e reticências... (...)


... ... ... ...



Acabei de ler "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez, o primeiro dele que leio, apesar de ter feito curso de literatura hispano-americana na faculdade e ter cansado de ouvir falar no homem e no seu famoso livro "Cem anos de solidão". Na verdade, prefiro Julio Cortázar, com seus cronópios e famas. Mas García Márquez cultiva o estilo típico do fantástico hispano-americano, em que realidade e fantasia se confundem. É a história de um homem que descobre o amor pela primeira vez na vida aos noventa anos de idade, depois de ter vivido uma vida "amorosa" e profissional medíocre e dormido a vida inteira com prostitutas que encontrava uma vez ou outra na noite.

Para comemorar o seu aniversário de noventa anos, o protagonista resolve ligar para a dona de um bordel para que esta lhe encontre uma adolescente de no máximo quatorze anos, virgem. Na noite do primeiro encontro, ele dá de cara com a mocinha dormindo nua e sente nela talvez a nobreza e a inocência que nunca encontrou nas outras mulheres de sua vida. Ele passa a dormir quase todas as noites com ela, mas sem tocá-la e sem nunca acordá-la, cultivando por ela uma espécie de amor platônico, já que ele só tem contato com ela durante a noite, enquanto ela está dormindo, pois teme conhecê-la acordada e acabar com o encanto da bela adormecida. Meio maluco, meio romântico, ele leva presentes pra ela, passa a enfeitar o quarto em que os dois dormem, deixa recados no espelho com batom, lê histórias para ela, inclusive a da Bela Adormecida. O fato é que o sentimento que ele passa a sentir pela menina muda completamente a sua percepção de vida, isso aos noventa.

Não dá pra ficar descrevendo, só lendo para sentir. Seria bom reparar no estilo de escrita do autor, em que a narração se mistura ao discurso direto, dispensando o uso de travessões ou aspas para representar a fala das personagens. Talvez esse estilo contribua para o efeito de mistura entre sonho e realidade que acontece em alguns momentos. Tenho que fazer uma leitura mais detalhada para poder descobrir.

Estilo e técnica à parte, temos aí uma obra de um grande escritor, sem sombra de dúvidas. Uma história de amor e de vida.

Quero destacar a passagem em que o protagonista, já tomado pelo sentimento de amor profundo pela menina, compra uma bicicleta para lhe dar de presente de aniversário, dizendo que lhe inquietava o fato de ela ser "tão real a ponto de fazer aniversário". Ao comprar a bicicleta, ele não resiste e resolve dar uma volta nela, tomado de uma alegria intensa de viver. Na minha humilde opinião, essa passagem resume todo o estado de espírito, leve, espontâneo, atrevido e rejuvenescedor, que só um grande amor consegue trazer:


"Quando fui comprar a melhor bicicleta não consegui resistir à tentação de experimentá-la e dei algumas voltas a esmo na rampa da loja. Ao vendedor que me perguntou a minha idade respondi com graça da velhice: Vou fazer noventa e um. O empregado disse exatamente o que eu queria: Pois parece vinte a menos. Eu mesmo não entendia como havia conservado aquela prática do colégio, e me senti sufocado por um gozo radiante. Comecei a cantar. Primeiro para mim mesmo, em voz baixa, e depois a todo vapor, com ares de grande Caruso, pelo meio dos bazares atopetados e o tráfego demente do mercado público. As pessoas me olhavam, divertidas, e gritavam para mim, me incitavam a participar na Volta Colômbia em cadeira de rodas. Eu lhes fazia com a mão uma saudação de navegante feliz sem interromper a canção. Naquela semana, em homenagem a dezembro, escrevi outra crônica atrevida: "Como ser feliz aos noventa anos em uma bicicleta".
(García Márquez, Gabriel. Memórias de minhas putas tristes, 17a. ed. Tradução de Eric Nepumoceno. Rio de Janeiro : Record, 2007, pg. 81)

Nenhum comentário: