sexta-feira, 28 de março de 2008

Entre o ser e o querer ser


Às vezes tanta coisa me vem à cabeça ao mesmo tempo e eu tenho vontade de escrever tudo aqui. Mas como enlaçar as palavras que batem e voltam no cérebro como aqueles carrinhos de brinquedo? Queria ser tanta coisa, mas sou apenas eu mesma, alguém procurando fazer as coisas direito, mas sempre errando enquanto tenta. E nunca deixando de tentar. Nada mais humano.
Isso que escrevi me fez lembrar um conto lindo do Machado de Assis, "Um homem célebre", que fala justamente sobre você querer ser uma coisa que você não é, e desprezar a sua própria essência, embora seja bela também. Pestana, o protagonista do conto, tem enorme talento para compor modinhas (as polcas, muito populares no séc. XIX), mas queria mesmo era ser um grande compositor clássico, como Mozart e outros. Mais ou menos como você querer ser um Tim Maia mas ser só Maurício Manieri, entendeu? Bom, para se inspirar, ele tem na sua sala o retrato de seus mestres. Por vezes, tem acessos de inspiração e, quando se senta ao piano e começa a tocar, o que acaba saindo é sempre uma... polca.
Há duas passagens que gosto muito. A primeira mostra Pestana em sua casa, tentando encontrar inspiração para compor o seu sonhado clássico. Inquieto, busca inspiração nas estrelas do céu e nos retratos de seus mestres e , ao mesmo tempo, divaga em pensamentos...

"Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento, mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota [uma de suas fãs], que entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?"


A outra me lembrou muito os dias atuais. Pestana, como compositor famoso de polcas, mantem contrato com um editor de partituras (naquele tempo, obviamente, ainda não existiam as grandes gravadoras de discos, nem muito menos cds, então vendia-se as partituras impressas e quem soubesse tocar algum instrumento, tocava nos eventos festivos). Pestana compõe suas polcas por encomenda e na hora de apresentá-las ao editor, leia o que acontece:
"Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa. — Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.

— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora Dona, Guarde o Seu Balaio.

— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição."


Os produtores de hoje fazem exatamente isso com os artistas em início de carreira: mudam seus nomes e os nomes de suas músicas para torná-las mais atraentes ao grande público. Machado de Assis atualissímo e, como sempre, revelador como ninguém dos segredos da essência humana. Me identifiquei de cara com a personagem principal.


Eu queria ter talento pra ser escritora, desde criança sempre quis ser. Sempre admirei os meus mestres Manuel Bandeira, Machado de Assis, Guimarães Rosa e outros, e sempre me imaginei escrevendo inspirada neles. Mas tudo que eu sempre consegui escrever só versa sobre mim mesma, em conteúdo encontrado nos meus diários escritos à caneta nas agendas ou cadernos dados por outros. Hoje, reflexo da era virtual, esses escritos egocêntricos são divulgados via blog. Fazer o quê, sou mais um Pestana Manieri da vida.
Quem tiver curiosidade de ler o conto, pode encontrá-lo na íntegra neste site: http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/massis_celebre.shtml , ou pode procurar um exemplar do livro que eu tenho em casa, livro em aparecem outros excelentes e famosos contos do mestre Machado (O alienista, A Missa do Galo, A cartomante, O Espelho etc.) , Machado de Assis - Contos, da coleção L&PM POCKET.


Um comentário:

Dan... disse...

Toda tentativa é válida, mesmo tendo a possibilidade do erro. Poque não errar... errar também nos ensina a ser, a viver, a sentir, etc e tal.

Tente muito, até acertar... Seja quem você acredita que pode ser para ser feliz, mas, seja feliz, independente de tudo e de todos, pois, só quem pode viver o seu dia, no seu corpo, mente e alma, é você mesma...

Beijãoooooooooo, saudades!!!