O cão que foi meu amigo inseparável por quatro dias. |
Nunca gostei muito de cachorros. Na verdade, eles sempre me inspiraram medo. Nem o único cachorro que a minha família teve, o Rex, que conviveu conosco durante quase quinze anos, fez com que eu gostasse mais dos cães. Ele era bravo e já fui mordida por ele algumas vezes. Assim, sempre preferi os gatos: mais independentes, mais indiferentes, enfim, mais fáceis para se defender em caso de mordida. Sempre tive muito mais afinidade com os felinos: a maciez do pelo, os ataques oportunistas de dengo quando desejam algo, as peraltices etc.. Também sempre os defendi por saber que os cachorros são a preferência mundial.
Nunca consegui entender esse amor desmedido que a maioria das pessoas deposita nos cães.
Até que na semana passada apareceu de repente um cachorro perdido perto da escola onde trabalho. Acho que era filhote, apesar do porte médio para grande. Magro, costelas aparecendo, dava para ver que não comia há dias. Não tinha aparência de doente, apesar da magreza evidente.
Fico imaginando que alguém deve ter passado por ali e o abandonado recentemente nas imediações, pois nunca o tinha visto por ali até segunda-feira, quando apareceu pela primeira vez.Um cachorro vira-latas, bonito, parece um daqueles cachorros perdigueiros que aparecem em filmes caçando raposas ou patos selvagens. Esse cão apareceu ali não com o fim de caçar raposas ou patos, mas para talvez conseguir o que a maioria dos animais jogados nas ruas procuram quando se aproximam de algum lugar onde circule muita gente de uma só vez: alguém para adotá-lo.
Não, ele não ficou ali só porque sabia que por lá conseguiria garantir pelo menos um pedaço de pão dado por mãos compadecidas da sua sorte de cão sem dono. Ele queria mais do que isso. Ele queria alguém para amar e ser amado.
Por sorte, ou por lástima, não sei, minha mão foi uma das que o alimentou durante esses quatro últimos dias. Eu o alimentei de pão, e ele me alimentou de um sentimento inédito para mim: uma amor incondicional.
De terça-feira em diante começou para mim verdadeira via crucis no sentido de tentar encontrar um jeito de ajudá-lo. Eu, por morar em apartamento, não poderia levá-lo para casa, ainda mais com os três gatos que tenho. Mandei um email para uma amiga minha, que tem contato com uma ong que ajuda a encontrar um lar para cães e gatos abandonados. Ela me respondeu que a ong não recolhe animais, mas dá uma força para pessoas que os recolhem e ficam temporariamente com os bichos em casa, desde que estes se responsabilizem pela castração, vermifugação e vacinação dos bichos. Ela chegou a sugerir que se fizesse um rateio entre as pessoas da escola para poder custear esses cuidados, mas o fato é que ninguém poderia ficar com o bichinho em casa, nem temporariamente.
Perguntei para os dois vigias da noite se eles poderiam ficar com ele, para o tiozinho que manobra os carros no estacionamento, para alguns professores. Não, ninguém podia. Ou porque também moravam em apartamento ou porque já tinham bicho demais em casa e seria complicado cuidar de mais um.
Começou a me bater um desespero sem tamanho. Dormia mal à noite, mal preparava as aulas que ia dar, comia mal também. Para piorar o meu estado emocional, todo esse acontecimento coincidiu com uma TPM que quase me matou de ansiedade e com alguns problemas que eu tive com alunos indisciplinados essa semana.
Na quinta-feira, mesmo sem sucesso em encontrar alguém que quisesse ficar com ele temporariamente, resolvi que iria tirar algumas fotos e mandar para meus contatos de email, assim como postar no facebook e ver se aparecia alguém que quisesse adotá-lo. Mas quando cheguei na escola, ansiosa para ver o bichinho e tirar as fotos, descobri que um FDP de um porteiro que trabalha lá o havia espulsado jogando água gelada nele. O desgraçado já havia feito isso no dia anterior, mas o bichinho voltou. Dessa vez, o miserável saiu jogando água e perseguindo-o até o final da rua, para se certificar de que ele não voltaria mais mesmo.
Fiquei p... e fui reclamar com ele. Estúpido, me respondeu que o bicho estava doente, cagando mole, sujando tudo e que a diretoria mandou que o expulsasse dali. Tudo bem que o cachorro não ficasse na escola, o ambiente não era o ideal para ele, mas eu queria ganhar tempo, mantê-lo ali até que conseguisse alguém que pudesse ficar com ele,mesmo que temporariamente. No final, o infeliz ainda respondeu que iria expulsá-lo sim, e que da próxima vez jogaria água quente.
Bem ou mal, o episódio acabou se voltando a favor do totó. Indignada, saí comentando sobre o ocorrido e um professor, que também era uma das mãos que o alimentava, resolveu que no dia seguinte, sexta-feira, caso ainda aparecessse, o levaria para um sítio que tem no interior aqui de São Paulo. Esse professor já havia comentado sobre isso antes, mas estava relutante porque já tem quatorze cães nesse sítio e ficou receoso de levar mais um. Depois que lhe contei sobre o ocorrido, me respondeu: "Se é pra ficar sendo maltratado, vou levá-lo. Tenho quatorze, fico com quinze. Pronto". À noite, para minha alegria, ele apareceu e eu pude lhe fazer alguns afagos aliviados com o que retribuiu com algumas lambidas de gratidão.
Foi um alívio, mas também foi angustiante: Será que ele apareceria no dia seguinte? Será que o professor não iria desistir de levá-lo? Será que ele seria mesmo bem tratado no sítio? Assim, no meio de todos esses acontecimentos, fui me apegando cada vez mais ao dog. E a recíproca era verdadeira.
Acho que ele adivinhava os momentos em que eu estava lá, segundo o próprio tiozinho do estacionamento me disse. Ele gostava de mim. Eu sentia isso. O seu olhar triste, pedindo carinho na cabeça, seus pulos de alegria abanando o rabo quando me via, a impressão que eu tinha de que ele pedia para eu levá-lo embora comigo quando eu saía em direção ao carro e abria a porta, ele ali me olhando meio decepcionado ao me ver partir, eu com o coração destroçado por não poder trazê-lo. Não conseguia comer direito ao lembrar que ele poderia estar por aí com fome e sendo maltratado por outros em porta de padaria ou boteco, onde certamente parava na esperança de que alguém lhe oferecesse algo para comer. Me apertava o coração a simples possibilidade de que ele pudesse ser atropelado ao atravessar uma rua. Enfim, um turbilhão de sentimentos me invadiu.
De repente, comecei a me sentir patética por estar alimentando tanta preocupação por causa de um único cão igual a tantos outros na mesma situação que ele e pensando por que eu não nutria o mesmo sentimento pelas crianças para as quais eu dava aula e que sabia estarem em situação até igual a dele. Foi então que lembrei de um trecho de "O pequeno príncipe", no episódio em que o principezinho se encontra com a raposa e ela responde ao menino quando este insistentemente lhe pergunta o que significa a palavra "cativar":
O encontro do principezinho com a raposa. Ilustração do próprio Saint-Exupéry para o seu livro. |
"É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo..."
Sim, ele me cativou, eu o cativei. Passamos a ter necessidade um do outro. Passamos a ser únicos um para o outro. Compreendi.
Quando chegou a sexta-feira, como eu tivesse dentista pela manhã, decidi primeiro dar uma passada na escola para tentar vê-lo. Cheguei a vê-lo rodeando a escola e percebi que havia me visto, mas em vez de se aproximar, desceu a rua e sumiu. Peguei o carro e desci para ver se o encontrava e o vi sumindo numa esquina de rua, sabe-se lá para onde. Ele, com sua inteligência canina, sabia que àquela hora seria mais prudente manter distância da escola, sob pena de ser novamente enxotado pela figura a qual me refreri acima. Passei o dia angustiada e ansiosa para chegar logo o momento de ir para a escola. Encontrei o professor dizendo que estava com tudo pronto para levá-lo: havia comprado uma coleira e forrado o carro com um lençol acolchoado. Também disse que havia ligado para o caseiro do sítio e pedido que este fizesse um jantar especial para recepcionar o bichinho.
O totó sentiu tudo isso e apareceu, bem no momento da saída dos alunos. O professor pediu que eu o distraísse enquanto ele ia até a padaria tomar um lanche. E foi nesse momento que pude perceber que o final seria mesmo feliz para ele. Ele me fez festas, lambeu minha mão, brincamos durante esse curto espaço de tempo. O professor voltou, prendeu-o na coleira e ele entrou sem protestar no carro, onde pareceu meio atrapalhado, mas tranquilo. Nos despedimos ali, com a promessa de que ele seria bem tratado. Me oforeci para pagar eventuais despesas com alimentação e veterinário que o professor pudesse ter, no que me respondeu para ficar tranquila.
Alívio. Mas um aperto no coração. Acho que o professor percebeu que eu fiquei um pouco triste com a partida do cãozinho e me telefonou assim que chegou ao sítio: "Vi que você fez uma cara xoxa quando saí". Dei uma risada sem graça. Falou então que o bichinho estava lá, feliz e saltitante, qua já havia jantado e agora estava solto em um espaço junto com uma cadela, para poder ir sendo introduzido aos poucos à convivência com os outros cães.
Ele se foi. E um pouco de mim se transformou com toda essa história. A sensação que eu tenho é que ele será feliz onde está agora, mas seria mais feliz se tivesse ficado comigo. Ou será que eu é que seria mais feliz?
Como eu disse, nunca tive muita simpatia aos cachorros, mas acho que é porque nunca havia amado um de fato. Para muitos ele era só um cachorro sem dono como muitos outros; para mim, pelo menos por quatro dias, ele foi o meu cachorro e eu fui a grande amiga dele. Intimamente o chamei de Lancelote, o cão andante.
Amar dói.
("Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" - Antoine de Saint-Exupéry em "O pequeno Príncipe")
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